Pelos dias em que choro
Por Alexandre Honrado
Gostava de andar com uma qualquer utopia portátil para trazê-la aqui, para esta prosa, e depois levá-la a passear como um cão, mostrá-la ao agente da autoridade, veja senhor guarda, esta é a minha utopia portátil, levo-a para toda a parte, até para a imagem do ecrã do teletrabalho, e agito-a sem pudor diante de colegas e alunos, perante os meus iguais e os outros que, custa-me dizer isto, não considero meus iguais.
A minha pequena utopia portátil acredita na construção do novo ser humano, capaz de sair deste amedrontamento, com as defesas reforçadas, um novo ser dotado da cultura de um novo humanismo, que não quer sair à rua como assassino para contagiar os outros, alegando uma vez que é para ir à manifestação política que o reclama, argumentando na outra que é para responder a um apelo místico, sindical, e asseverando numa outra vez que é a vocação religiosa que o leva ao desrespeito e ao assassínio dos inocentes, em suma, vamos lá matar os nossos semelhantes na Alameda, no terreiro do Seixal, na Santa Missa, no adro amplificado de Fátima…
Gostava que a minha utopia portátil formasse seres definitivos e que aqueles que viessem depois de mim fossem menos crentes e mais credíveis, menos estruturados pelo impalpável e mais palpáveis no rigor das suas estruturas mais sólidas e de uma equidade fantástica, de uma alteridade magnífica, que deixasse para trás os séculos de ignomínia que todos os nossos antepassados promoveram e legaram. Nos legaram. Uma pequena utopia portátil, para usar, não como a máscara protetora, que é também a máscara da impunidade. E até há quem não as tenha quando vão às praias matar os seus semelhantes, refrescando-se em águas cristalinas que ficam sujas rapidamente, com a alarvidade daqueles que nelas mergulham a providenciar a morte, o desrespeito, a falta de respeito por si e pelos outros. Podemos então abraçar, para morrer abraçados, como nas histórias que contam aos turistas nas visitas ao Vesúvio, na assustadora cidade de Pompeia, onde um vulcão apanhou famílias inteiras, que mesmo sabendo que o vulcão ali estava, teimaram em permanecer ali, ali construindo as suas casas, ali ficando até ao fim, ali condenando os filhos à pior das mortes, ali até ao abraço que a lava em brasa aproveitou para mostrar que na natureza não é o ser humano quem manda, mas o tremendo desígnio da força que nos transcende.
Adorava passear por aqui com uma qualquer utopia portátil, que negasse o evidente: a fome e outras pandemias mataram nos últimos meses milhões de pessoas, algumas delas ainda crianças. Houve genocídios. Países que atacaram outros países. E cenários já nossos conhecidos, de Moçambique à Palestina, passando pela Síria (o título da última notícia que li há poucas horas, dizia que novos combates entre o regime sírio e os jihadistas provocou dezenas de mortos. O conflito já matou ali mais de mil profissionais de saúde, fui à janela bater-lhes palmas, mas ninguém me ouviu). O que é isto diante dos casos de violência doméstica que foram escondidos das primeiras páginas? O que é isto diante da menina de 9 anos que em Portugal foi morta, asfixiada, alegadamente, pelo próprio pai? O que é isto diante da nossa vontade de sair à rua e desafiar a sorte dos outros? O que é isto num mundo marcado pela pandemia da estupidez, que elege facínoras, assassinos e irresponsáveis que matam os seus povos e contagiam os povos dos outros e no intervalo promovem um churrasco alarve e imperdoável?
Tenho muitos dias cheios de esperança, outros em que rio, em que respiro de alívio como alguém que se liberta. Esta prosa é sobre o meu desejo de andar por aí com uma utopia portátil. Mas é sobretudo sobre os dias em que choro.
Pode ler (aqui) todos os artigos de Alexandre Honrado